domingo, 19 de dezembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA VII


Após uma doce viagem a chegança se dava pela casa do tio que morava na chácara bem próxima da fazenda. A menina apeava da carroça, mexia com os primos pequenos, um deles preso dentro de um caixote, ou melhor, chiqueirinho, sorrindo para tudo; despedia dos tios e  seguia para a fazenda dos avós. Havia somente uma alameda, sombreada por frondosos pés de manga, separando as duas moradas. A menina atravessava esse trecho tomada de sustos por ouvir os ruídos no mato. Eram os calangos aprontando correria pelo chão atulhado de folhas secas fugindo às pressas para os troncos das árvores, pareciam bem mais apavorados com a visita inesperada. Os pássaros também assustados deixavam suas frutas despencarem pelo chão, derrubavam outras e saiam em debandada. Mesmo sendo um percurso pequeno essa algazarra era mais do que suficiente para aumentar o medo, sobretudo por haver uma pequena curvatura no caminho tirando a visão das duas casas trazendo aparente solidão em meio a tanto mato. A imaginação solta e tomada pelo temor  judiava da menina e  fazia com que os rabos das lagartixas virassem cobras;  onça, lobo  e  outros bichos piores espreitassem por perto prontos para atacá-la. Tudo isso porque era ali, do lado de baixo da alameda, o início de um grande pomar formado por árvores frutíferas bem antigas e por isso muito altas e folhosas. Quase todo o arvoredo esbarrava no céu. A menina apertava os passos para chegar rápido e em segurança até a casa, seu coração sossegava somente após ver a bica jorrando no terreiro da cozinha.


Continua...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA VI



Dois tios moravam na vizinhança da fazenda e diariamente comercializavam a produção de suas roças na cidade. Sendo que um deles ajuntava também os produtos da fazenda do velho pai fazendo com que a carroça saísse abarrotada de mercadorias, sobrando lugar apenas  para um passageiro junto ao condutor. Havia latões com leite, verduras, frutas, ovos, queijos, doces, mel, rapaduras, cachaças e até galinhas resmungando estrada afora. Já na entrada da cidade a carroça encontrava os primeiros fregueses, em pé nas portas das casas, atraídos pelo som do tropel do cavalo no calçamento pés-de-moleque. Enquanto a comercialização ocorria, rolava risos e prosa entre vendedor e compradores, os acontecimentos dos arredores eram comentados a rodo: quem morreu, quem nasceu, quem casou, quem mudou! Era assim que as notícias corriam.

Quando janeiro chegava a menina arrumava a sacola de roupas e caminhava ao encontro da carona na carroça. O ponto de parada, tanto na chegada da roça quanto na saída, era a casa de uma das tias da cidade. Ali era o local onde o leite seria novamente coado e distribuído pela vizinhança. Quando a carroça chegava já encontrava formada desde muito cedo uma fileira de leiteiras e canecos à espera do leite. Era a maneira prática de segurar lugar sem necessidade de estar presente. A atitude se justificava, visto que na época de seca, quando o leite minguava, as últimas vasilhas às vezes ficavam vazias.

Na volta para a roça a carroça ia leve e solta. Levava somente mantimentos não produzidos por lá,  como o açúcar para os doces, arroz, macarrão, ferramentas, remédios e miudezas em geral. Pegar carona nessas idas e vindas era um divertimento que a menina esperava com satisfação. Ela se deliciava ao ouvir as histórias dos tios pela estradinha, ver de perto cada pedacinho de chão, beber água geladinha na nascente  e ainda ouvir os ecos dos pássaros soando por cima do rio e nos morros.

Continua...

domingo, 28 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA V

A menina se interessou em ficar mais próxima do avô a partir dos nove anos de idade, ele contava com uns sessenta e nove. A figura imponente, a capacidade de impor grande respeito aos dezesseis filhos e dezenas de netos e a maneira simples de vida na roça levaram a menina a imaginar uma convivência mágica com aquele avô rústico, sem meias-palavras e de poucos dengos. A solução encontrada foi rumar para a fazenda nos períodos de férias, mesmo ciente que a temporada significaria alguns desconfortos como ficar à luz de lamparina, não ter a companhia de nenhuma outra criança, tomar banho na bacia, dormir com as galinhas, acordar com os galos (a janela do quarto no qual dormia se abria para o galinheiro) e, evidentemente, obediência régia.

Fazia parte ainda desse rol um hábito para o qual não havia chance para negociações e se transformara em verdadeiro sacrifício para a menina: era a hora do terço. Ocorria por volta das sete da noite, dentro do quarto dos avós os quais ficavam recostados na cama já vestidos para dormir e com os terços em punho, enquanto os outros rezadores se postavam ajoelhados ao lado cama. A única tia presente, visto que os outros quinze filhos já tinham se esparramado, era quem puxava a ladainha. A reza não acabava nunca e a certa altura de dor lancinante nos joelhos os pernilongos aproveitavam as canelas aquietadas e davam picadas fulminantes. Por estar diante de um rito religioso seria inaceitável espantar os bichos com tapas e volteios enquanto eles se banqueteavam. Ver os moradores apresentarem certa calma diante dos sugadores era admirável, justificavam ao dizer que sangue novo atraía maior quantidade de mosquitos por isso os visitantes sofriam mais. A menina acreditava. Daí quando surgia algum calombo assustador era oferecida uma latinha redonda, amarela, com um creme rosado. Ao ser esfregado na ferroada proporcionava o milagre do alívio imediato. Todavia, só se usava o creme nos casos especialíssimos, pois toda mercadoria adquirida na cidade tinha seu uso comedido. A menina contava que os esforços para cumprir as obrigações de visitante seriam pequenos entremeios diante da rica jornada em companhia do seu velho avô.



Continua...

sábado, 20 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA IV



Fazer visitas aos avós com a família toda era costume sem muitas novidades por haver uma respeitosa cerimônia por parte dos filhos para com os velhos pais, ali, assuntos polêmicos eram evitados. Já na chegada assistia-se a uma cumprimentação na qual os filhos tiravam o chapéu, quando era o caso, e faziam uma mesura para o beija-mão acompanhado do pedido de benção. Após esse andamento solene sentavam-se no comprido banco na varanda para início das conversações. A descontração dava-se quando a meninada disputava uma moeda do pai para que fosse ofertada aos santos dispostos em uma pequenina capela que dava para a varanda. Havia sempre um pratinho de porcelana à disposição para a oferenda a qual após um tempo era doada para a paróquia da cidade. Poucas travessuras podiam ser feitas naquelas terras. A meninada já saia de casa com várias recomendações de exemplar comportamento na casa dos avós. A graça então se resumia em andar pelo quintal para catar frutas com os primos, apreciar as quitandas e ouvir os causos dos adultos.




O avô era alto e tinha um corpo esguio graças ao trabalho bruto. Usava uma rústica correia ajuntando a calça na cintura, andava descalços o tempo todo e não gostava de viajar de carro, dizia não se sentir bem enfiado dentro de um veículo. Se sua presença fosse extremamente necessária na cidade, a viagem era feita a pé ou de carroça. Costumava falar muito alto, a ponto da vozeada se espalhar por muitas lonjuras. Tal alarde provocava idéias sobre possíveis desavenças nas suas paragens àqueles que estavam próximos das porteiras de entrada. Para se ter certeza se era uma boa hora para se chegar, sensato seria esperar pelo final da gritaria: se surgissem gargalhadas era somente mais um causo da roça, se prevalecesse silêncio, melhor fazer meia-volta rumo à cidade. A confusão provinha pelo hábito, e porque não dizer da notável capacidade, que o avô tinha para narrar histórias em altos brados empregando dramaticidade às vozes dos personagens envolvidos. Se necessário fosse, trocava a entonação de acordo com o embate, surgindo então, diálogos ágeis e quase reais. Ao final da narração, sendo caso de comédia ou não, o avô se encarregava de puxar as gargalhadas incentivando as dos ouvintes. Reconhecia-se que a graça estava na reapresentação feita e não no fato ocorrido.

Continua...

domingo, 14 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA III



Completada a descida chegava-se à segunda porteira dando acesso ao cercado do curral já livre do gado, mas não dos sinais da recente presença deles espalhados pelo chão. Ao descer da condução, que ali ficava estacionada, olhar onde se pisava era necessidade premente. Por completar a chegança faltava abrir a terceira e última porteira passando assim para dentro da área da casa. Havia ali um trecho calçado com pedras roladas as quais facilitavam a limpação dos sapatos. À medida que iam caminhando, as visitas esfregavam os pés pelo piso de pedras até a entrada da varanda, costume que indicava educação conjugada com certa cerimônia. À esquerda da varanda uma tímida plantação de café, suficiente apenas para o consumo da casa, à direita um pé de jatobá varando o céu de tão majestoso. Seguir seu longo tronco com os olhos fazia doer o pescoço, porém valia a pena, a copa do jatobá se confundia com as nuvens andejas no céu dando a ilusão de movimento.

Diziam que tão nobre árvore era centenária, atraía a criançada logo na chegada. Encher as mãos com seus frutos era a primeira brincadeira, mesmo cientes de que eram mais engraçados do que gostosos. Dava trabalho quebrar as cascas bastante duras, eram necessárias algumas pedradas surgindo daí sementes recobertas com uma massa verde, muito seca, sem gosto e de cheiro forte, porém muito usada entre a meninada para cobrir os dentes proporcionando uns sorrisos matreiros para os desavisados.





Continua...

sábado, 6 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA II



Ao se aproximar do único trecho da estrada em que havia um barranco de terra vermelha era sinal que o destino estava bem próximo. A julgar pelas paisagens ao redor não era natural aquela torrão vermelho destacando-se ao longe, contudo sua serventia era aliviar os ânimos dos passageiros, quase sempre amontoados nos veículos, para a chegada.  Além disso, o vermelhão sinalizava o início de uma subida que desnorteava cavalo, era bom se prevenir. Pois se o bicho estivesse arrastando carroça carregada com gente e apetrechos a penúria era muita. Momento certo de arrepiação nas orelhas, suor no lombo, patinação para lá e cá, única forma do animal romper a elevação. Se fosse o carro, o motor urrava soltando fumaça. Vencido o morro chegava-se a um platô que dava início a descida até a sede. Via-se então a primeira porteira a ser aberta, momento de menino pular da condução, soltando correria para abrir o ferrolho. O gosto era fazer da porteira montaria e assim dar um breve passeio. Nos dias de muito humor largava-se o menino da porteira para trás e ele com desespero nas canelas tentava apanhar a condução novamente, era zombaria pura.

Já dentro da propriedade, ia-se devagar, momento de descer a estradinha fina, parecia feita de rastro de  gente e de animal, pois no centro havia mato o qual provocava certo barulho no fundo do carro. Dali começava-se a avistar o telhado da sede dentre as árvores. Ao longe o que a vista alcançava parecia uma pintura, o rio represado com suas pequenas ilhas assemelhava-se a um mapa. As águas mansas e o céu se imbricavam no horizonte, era uma beleza só.

Continua...

terça-feira, 2 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA

I

A fazenda dos avós distava poucos quilômetros da cidade, talvez uns seis, mas para uma menina parecia uma longa viagem. Não havia caminho mais bonito, o percurso era feito normalmente de carro, mas melhor mesmo se o passeio fosse de carroça. A estrada de terra era estreita, bem arborizada, parecia um túnel verde com os barrancos cobertos de plantas. Não vivia só de buracos, havia trechos de chão lisinho com fina camada de areia fazendo com que a carroça deslizasse com o galope do cavalo, daí era só abrir o sorriso e aproveitar a gostosura. Quando de carro, o motor parecia desligado de tão suave. No carro a melhor brincadeira da meninada era ganhar a janela, colocar a cabeça para fora e apostar que galho algum acertaria a cara, nem sempre se ganhava essas apostas. A demora em perceber um galho se aproximando garantia uns arranhões além dos risos dos companheiros.


O rio parecia querer brincar ao seguir a estrada todo o tempo. Havia trechos em que a água insistia em serpentear as beiras fazendo a estradinha se apertar nas curvas trazendo beleza e medo. Momento de histeria era quando se aproximava a travessia da ponte velha e estreita; dava um frio na barriga, a boca calava e aí se corria o olho para baixo sem querer olhar, mas sem querer perder a grandeza da visão. Era de relance que se contemplava uma água escura com promessa de muita fundura, de morte certa no caso de queda. Uma dúvida se instalava naquele instante: será que a ponte vai cair logo agora? Seguindo em frente com menos temor, somente não desejando sorte pequena de topar com outro veículo. Se tal fato ocorresse um teria que se enfiar mato adentro, subir barranco, escapar de precipício para dar passagem ao outro. Fazer cavalo que puxava carroça entender essa manobra era um Deus nos acuda, o bicho dava pinote e fincava na teimosia, perigava muitas vezes até cair rio abaixo.

Continua...

segunda-feira, 24 de maio de 2010

EPÍLOGO

Ainda hoje restam dúvidas entre seus pares a respeito das verdadeiras razões que levaram Sô Chiquito a manter as chamas vibrando no fogão ao longo de várias noites, mesmo estando na iminência da morte: estava ali queimando o medo ou atiçando a fé? Ou apenas fez uso da sua evidente determinação para cumprir o desejo de continuar ativo? Essa hipótese é a mais considerada, visto que, além de mostrar coerência com o passado de labutas, esclarece que, para ele, o processo da vida consistia somente de desafios brutos. Embora existam várias conjecturas, sua atitude final continua repleta de significados.

Após esses dias ele se foi. Antes de ficar velho, antes de virar menino. Sô Chiquito não pediu reza e não puxou do terço, contudo se rezou em algum momento foi por meio dos gravetos atirados, um após outro, por várias noites seguidas. Se alcançou alguma graça divina da qual tirou acalanto ele a viu através das labaredas durante suas noites insones.

Seus feitos e acontecidos são comentados pelos arredores e fica, a saber, se alguns casos ainda estão por vir à tona. Porém, prevalece um relativo consenso: ele nada viu ao seu redor por acreditar não existir maiores importâncias além das obrigações, invariavelmente impostas por ele mesmo, a cumprir. Um exemplo disso foi a opção escolhida na ocasião em que um dos filhos queimava em febre ao mesmo tempo em que uma vaca passava mal por envenenamento. Ele no curral ficou. Perguntado se não se preocupou com a doença do filho, respondeu pragmático: _ Na casa tinha muita gente que sabia cuidar de gente, para cuidar da vaca só tinha eu mesmo!

O tempo passou e, generosamente, embaçou o que não foi comédia. Pinçar da trajetória humana somente o que não dói não deixa de ser uma boa forma de eternizar o que faz bem.

*******

quarta-feira, 19 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 14

CAPÍTULO XIV


Tempos depois Sô Chiquito caiu doente com doença grave. Os dias iam e viam e ele só piorando. De certa forma insistia para dar conta de alguns afazeres, andava com o apoio de um bastão com o qual saltava até córrego. Era uma agonia acompanhar seus exageros nas atividades. Entretanto, a partir do momento em que caminhar, mesmo que capenga, ficou impossível, passou a fazer uso de uma cadeira de rodas e era desse modo que vistoriava o curral e, para desespero dos acompanhates, enchia os aros da roda com estrume. Quando até esses passeios foram ficando difíceis, passou a exigir que viessem até ele, dia a dia, para relatar o que ocorria nas suas terras. Iniciou-se dentro de casa um leva-e-traz de notícias, um entra-e-sai de bichos e produtos; alvoroço em demasia só para lhe dar alegria. Nascimento de bezerro era festa, o bicho era levado no colo para ele apreciar; pintinhos recém-saídos das cascas chegavam a ele em cestas assim como peixes graúdos pulando no balaio; colheita de quiabo, alface, abóbora, beterraba, cenoura, enfim, tudo que ele tinha cuidado e plantado lhe era apresentado.

Porém, quando a noite chegava agrado nenhum lhe apetecia. Ocasião em que lhe surgiu a aflição de desejar varar a noite em volta do fogão à lenha atiçando o fogo até o dia começar a clarear. Reclamava que não tinha sono e que ali era o melhor lugar de ficar, olhando as brasas, seguindo as labaredas. No calor do dia colocava as pessoas ajuntando gravetos e lenha, queria estoque perto dele, não podia faltar combustível para o seu fogão. E ficou noite após noite alimentando o fogo. Somente com muita insistência ia para a cama, mesmo assim quando pegava no sono acordava assustado querendo saber se tinham deixado o fogo apagar. Houve noite em que sua obstinação em manter as chamas acesas foi tamanha ao ponto de querer sair da cama, e com dificuldades foi ver o fogão, cismou que o fogo estava apagado.

Continua...

sábado, 15 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 13


CAPÍTULO XIII

Havia centenas de galinhas soltas pelo quintal sujando tudo e fazendo ninhos nos lugares mais inesperados, porém assistir ao trato, acompanhar aquele alvoroço se reunir rendia graça. A distribuição do milho era com horário estabelecido e respeitado, critério rígido para a disciplina da criação. Sô Chiquito usava uma mesma cuia como medida, mesmo tendo aumento no número das galináceas. Alegava que tinha que ser pouco milho visto que se eram galinhas caipiras tinham mais é que pastar. Depois de muito observar, ele concluiu que havia injustiça no terreiro, pois algumas galinhas espertas e danadas não deixavam outras mais lerdas incharem o papo. Inventou um troço como maneira de equilibrar a quantidade de ração entre elas. Baseava-se em encher uma garrafa pet transparente com milho, tampar bem e atirar no meio daquele mundo de penas. Enquanto as galinhas gulosas bicavam desvairadamente a armadilha ele atirava a cuia com milho em direção às outras magrelas, assim foi controlando as porções para que todas engordassem por igual. Mesmo sendo uma cena de sadismo, não deixava de ser divertida, a meninada adorava. Ainda assim freqüentemente ele exarcebava nos métodos educativos com as galinhas e continuava inventando sistemas.

Um dia estava ele atraindo as bichinhas como de costume: _prruuuu, prrrruuuu. Elas saíram dos seus cantos e ninhos, vieram correndo, felizes, com bico atirado para frente, asas abertas. Sô Chiquito começou jogando o milho por uma das mãos, na outra manteve um pau escondido por detrás das costas. Inquirido pelo genro, que a tudo acompanhava o porquê do porrete, ele desabafou: _ Tem uma danada que não vai atrás da garrafa e fica que nem metralhadora com seu bico certeiro em todo o milho, come muito mais que as outras, estou dando umas pauladas na testa desta esfomeada para ver se ela aprende! Não aprendeu. Numa das lições a pobre da galinha ficou tão tonta que acabou indo pra panela.

Continua...




segunda-feira, 10 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 12


CAPÍTULO XII


Seu Chiquito não gostava de possuir cavalos e tampouco montá-los, justamente por isso percorria a fazenda na sua velha camionete usando trilhas ou mesmo passando  por cima do pasto baixo. Um dia, ao fazer um itinerário mais distante, levou consigo um rapazinho apenas como companhia. E lá foram eles. A certa altura do trecho chegaram a uma velha tranqueira, o rapaz, que já era um motorista bom, achou o espaço estreito para carro. Com jeito, disse que era melhor parar e avaliar. Ainda no carro estudou um pouco a questão e avisou o motorista que não dava para passar de jeito nenhum. Seu Chiquito atrás do volante, com sua característica impaciência, protestou dizendo que daria para passar sim.  Iniciou-se  uma teimosia: Dá, não dá, dá, não dá. O rapazinho saiu do carro, foi para frente da passagem, mediu a largura da porteira com o olho e pensou (só pensou): não passa; principalmente com esse motorista atirado. Com muito jeito, disse: _Sô Chiquito, se eu fosse o senhor não tentaria passar! O velho fazendeiro não era homem de se convencer fácil, nem tão pouco dava braço a torcer. Cansou do lenga-lenga. Acelerou o carro como se houvesse um morrão a vencer, passou pelo vão da velha porteira num rompante só espalhando cacos de retrovisor por todo lado, rasgando as laterais do carro naquela estreiteza e embaçando tudo com fumaça. O rapazinho assustado e com os olhos esbugalhados ainda escutou :_Não falei que dava?

Continua...



domingo, 9 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 11


CAPÍTULO XI


Continuava a dirigir mal. A bem da verdade nunca se soube se alguém lhe ensinou a dirigir. Problemas na visão não restavam dúvidas que ele tinha, pois teimava em continuar a usar os óculos de camelô. De algum modo possuía carteira de motorista, ficou com a mesma por décadas, nunca renovou. Nos períodos de fiscalização na estrada de acesso à cidade todos o avisavam para se aquietar na roça, evitar problemas. Havia um guarda camarada, ciente da situação, que lhe dava uma pista em qual dia deveria se recolher por causa da blitz. Mesmo assim foi pego pelos rodoviários algumas vezes. Alegava, indignado, que estava trabalhando, saiu apressado e por causa disso os documentos tinham ficado para trás. Fazia teatro mostrando as roupas sujas, botas enlameadas, chapéu suado. Se os guardas fossem de fora da cidade lhe davam multas sem conversa, aí ele esperneava, era certo. No caso de patrulha conhecida era mais fácil, sobretudo após a demonstração do labor. Conseguindo a compreensão dos guardas, agradecia a liberalidade oferecendo umas verduras recém-apanhadas e a promessa de umas galinhas gordas, dizia que era só passar na fazenda. Nesse caso os guardas se contentavam em buscar as prendas e deixar Sô Chiquito prá lá. Conseqüentemente a ilegalidade da carteira vencida comemorava mais um aniversário.

Continua...

terça-feira, 4 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 10



CAPÍTULO X


Era uma peleja para deixar os netos pescarem quando eles desejavam. Aliás, poucos eram os escolhidos para tal deleite, pois tempo de pescaria era determinado pelo Sô Chiquito. Configurava ocasião rara por depender de vários fatores impostos pelo do dono da lagoa, como por exemplo, se a época estava boa para pescaria, segundo sua análise; se o momento era adequado para os peixes, segundo seu olho; se os anzóis eram pequenos, nesse caso havia necessidade da apresentação de prova material; se a lua era cheia e algumas outras conjecturas. Caso o candidato a pescador não fosse da família deveria ainda lhe ser simpático. Conjugar os pormenores exigidos correspondia a um evento único para muitos. Para início de conversa os netos cumpriam uma exigência suplementar que era trazer os peixes pescados para ele averiguar, após o que ele recolhia os melhores para a janta dele, mandava jogar alguns de volta na lagoa para darem uma engordada e deixava que levassem uns lambaris. Era insatisfação de neto garantida. Ainda assim os meninos gostavam de ficar na diversão. Depois de um tempo de peixes confiscados, Sô Chiquito notou que essas pescarias estavam muito minguadas de peixes, quis descobrir por quê. Inquiriu os pescadores: _O quê ta acontecendo com ocês? _Ficam lá na beira d’água um tempão danado, lagoa cheia de peixes e nesse balaio não tem nada? Os netos tentaram sair pelo tangente, disseram não entender aquela sumida dos peixes, coisa e tal. No que ele respondeu:_ Procura debaixo do caixote, aquele lá que ocês tavam sentados, pescaria boa ta é lá, só tem graúdos, busca tudo, quero dar uma olhada!

Continua...

quinta-feira, 29 de abril de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 9


CAPÍTULO IX



Depois que ficou viúvo mudou-se de mala e cuia para a fazenda. Ficou do jeito que gostava, morando no mato, sem ninguém para amolá-lo. Continuava a levantar-se de madrugada e a dormir com as galinhas. Na lida diária contava com a ajuda de poucos empregados, a maioria desprovido de inteligência. Tais dificuldades para entendimentos, de certa forma, explicam a razão de terem ido trabalhar para um patrão de gênio tão intempestivo. Um dos empregados gostava de engolir lambari vivo para fazer graça para as visitas. Outro era epilético, de vez em quanto tinha ataques e caía dentro da lagoa, já foi puxado da água com enxada, se não bastasse, outros bebiam muito. Sô Chiquito continuava no batente com essa turma, era facão prá lá e prá cá, trato dos animais, horta e o que mais surgisse, sempre na xingação, sendo necessário ou não.


Mesmo diante da fama de bravo, já muito esparramada, achou por bem diminuir valentia com os filhos já maduros, e que afinal eram só visitas. Ainda assim, de vez em quando, ele saia das tamancas com algum. O filho atingido com o xingatório dava uma sumida da fazenda para mostrar contrariedade, uma forma de dar lição ao pai. Dizem que pouca importância ele dava ao fato. Foi nesse tempo o acontecido que muito vexou um dos filhos que, durante visitação ao pai, levou um amigo consigo e, sem imaginar a infeliz ideia, foi ao pomar levando um saco para colher mexericas para que o amigo as levassem para casa. Não é que Sô Chiquito considerou aquela atitude uma afronta e deu uma bela puxada de orelha no filho, bem ali, na frente do amigo. Além de ter dito várias palavras que não vêm ao caso, deixou claro que não gosta que apanhem suas frutas sem pedir e que ali não era terra de ninguém.  Filho e visita foram embora, com os rabinhos entre as pernas e sem as mexericas. Quem assistiu a cena disse que cutucaram a onça com vara curta.

Continua...

domingo, 25 de abril de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 8

CAPÍTULO VIII



Entregou a venda para a mulher e os filhos tocarem e foi viver na fazenda. Só saia de lá à tardinha para dormir na cidade. Foi um alívio para todos, ficar sem tanto arrojo, pelo menos durante o dia, foi um descanso. Mesmo contando com a diminuição das rabugices não foi um completo alento, pois mantinha certas exigências: nada podia atravancar a passagem do carro na entrada da chácara, Sô Chiquito passava por cima em objeto esquecido pelo caminho para dar lição; o portão de acesso à cozinha deveria ficar aberto no momento da chegada dele, sem deixar os cachorros entrarem. Certamente não era uma tarefa das mais fáceis, ficar ali de prontidão a espantar oito cães até que ele passasse com seus balaios, dava até zonzeira. Dos rituais de chegada o mais perturbador era manter os chinelos de borracha, junto ao banco, à disposição dos seus pés de bota. Cumprir esse dever era canseira certa, um dos chinelos ou mesmo o par desaparecia com freqüência, os cachorros se encarregavam disso. Era realmente um tempo de muita braveza!

Continua...

terça-feira, 20 de abril de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 7

CAPÍTULO VII


Com muita trabalheira e pouco gasto, adquiriu patrimônio, aumentou negócios. Mesmo diante da boa situação financeira só aceitava fartura se fosse de comida, o resto era regrado. Suas roupas aparentavam desleixo, gastar com roupa e sapato estava fora de cogitação, caso surgissem rasgos pelas roupas exigia remendos, além disso, as marcas de nódoas das bananeiras e o chinelo de dedos completavam o aspecto descuidado. Assegurava que roupa de trabalho é assim mesmo e como a vida era só de labuta para que roupa nova? Era um tempo de muito trabalho, começava a se movimentar antes de o sol nascer até ao entardecer, de domingo a domingo, ano a ano, a vida inteira. Economizava no que podia, o ganho era guardado com objetivo de comprar fazenda. Nunca soube o que era férias, dizia que era perda de tempo e dinheiro. Tampouco conheceu o mar, viagens para outras paragens foram raras. Só ficava ali naquele mundinho miúdo. Ele, a mulher e toda a filharada, eram nove.

Os filhos morriam de medo dele, quando Sô Chiquito entrava em casa era bom assuntar o seu humor, bastava ele mostrar contrariedade com algo para que todos se recolhessem aos seus aposentos e lá ficar quietinhos, fora da vista, com freqüência todos dormiam antes das galinhas. Foram criados nos limites da chácara, não havia permissão de sair para casa alheia e os de fora pouco se aventuravam a fazer uma visitação que seja. E assim foi até ele cismar que a pequena cidade estava grande para ele. Comprou as terras que sonhava e para lá se foi.

Continua...

sábado, 17 de abril de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 6

CAPÍTULO VI

Não gostava de padres. Dizia que eles só sabiam pedir. Não discutia religião nem futebol, ter time nem pensar e especulou muito pouco sobre política. Para ele, comerciante não deveria demonstrar gosto por certos assuntos. Mas houve um dia em que no calor da hora ele soltou sua opinião sobre Jesus Cristo:
_ Cristo foi o maior revolucionário que o mundo já teve ou terá. Disse isso assim, no seco. Nunca foi à missa. Atitude essa mais do que coerente com a sua maneira de conduzir o dia-a-dia. Na sua trajetória não cabia conjugar reflexões dominicais com suas verdades absolutas. Os mais chegados, em momentos raros, se aventuravam  em provocá-lo dizendo-lhe que se um dia ele adentrasse uma igreja todos os santos sairiam em debandada, ele com um ar matreiro parecia gostar do comentário. Tempos depois descobriu-se que ele, juntamente com outro comerciante, pagou um telhado novo para uma pequena igreja cujo santo possuía nome tal qual o seu.
 
Continua...

quarta-feira, 14 de abril de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 5

CAPÍTULO V


De todas as suas certezas a que apresentou menor chance de ser contestada e em nenhum momento considerou sua conseqüente fúria exagerada foi estimulada por seu encontro com um pote de creme. Tudo começou por causa da mania que ele tinha de só entrar no quarto para dormir com a luz apagada, ele ia entrando no escuro e assim gostava de achar seu rumo. Nesse dia ele tinha cortado muita cana e se esfolado todo, teve então a brilhante idéia de passar um creme para dar alívio no ardume que sentia. No escuro, abriu a porta do guarda-roupa pegou o pote de creme da mulher e se lambuzou, passou nos braços, nas mãos e até na cara para abrandar quentura do sol. Só que achou o cheiro meio esquisito, resolveu sair do quarto para dar uma olhada. Foi um susto. Onde tinha passado o creme estava negro e  exalava cheiro de ovo podre. Pensou: É bosta. E não teve conversa: _ Quem foi o filho da puuuuta que colocou bosta pra eu usar? O pavio foi aceso. O pote voou janela afora, teve início a uma xingação sem limites, sobraram graves impropérios para os que se atreveram a esclarecer a confusão. Nem depois que a raiva diminuiu quis saber de conversa e afinal de contas quem  já não sabia que era conveniente deixar menos explicações? Iniciar palavreado sobre assunto polêmico após calmaria era ato insano. O fato real é que o pote de creme era à base de lamas do Araxá, presente que a mulher ganhou da filha. Sô Chiquito nunca ouviu essa verdade, para ele foi bosta encomendada.

Continua...

sexta-feira, 9 de abril de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 4


CAPÍTULO IV
Havia época em que ele cismava com umas crenças, volta e meia vinha com opinião nova. Ele tinha disso, não adiantava provas ao contrário. Tirava umas idéias da cabeça e ponto. Uma delas foi quando mandou a mulher trocar os zíperes das calças compridas das filhas: _ Troca tudo, põe de lado. Não quero conversa. E disse ainda: _ Essas moças tão engravidando é por causa dessas modernidades, onde já se viu roupa com tanta facilidade? As filhas ficaram muito tempo sem usar calças compridas, tal moda iria provocar risos em toda cidade, esperaram ele esquecer tamanha esquisitice. Não podia escutar suspiros diante de novelas, se por causa das casas bonitas soltava suas verdades: _ É tudo de isopor. Essas escadarias também são de isopor. Ou se por causa da história contada: _Não existe nada disso, novela só engana os trouxas, é mentirada só! De todas as cismas a mais curiosa era a lista de medicamentos que possuía para aliviar seus incômodos, além de insistir com todos para que fizessem uso em vez de gastarem na farmácia, não se sabe de onde tirava as indicações: Kolynos era bom para picada de inseto, queimaduras, bichos de pé, cortes em geral e até prá qualquer outra coisa que ninguém sabia o que era. Para cara cheia de espinha receitava passar nata de leite gordo. Quem chegou a usar disse que a cara encheu de espinha mais ainda. Gostava também de beber água com borralho 
do fogão à lenha, alegava que era uma maneira boa de adquirir “potassa”. Não vivia sem um leite magnésio, bebia diretamente no gargalo da garrafinha azul antes da hora de dormir.
Continua...

domingo, 28 de março de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 3

CAPÍTULO III


Trabalhava como ninguém, acordava às 5h da manhã e chamava de preguiçoso quem ficava na cama depois disso, botava os filhos para fora aos gritos: _ Tá na hora! Tá na hora! Enquanto todos corriam para acompanhá-lo para a venda ele percorria a chácara. Tratava das galinhas, coordenava o fubá dos porcos, dava as ordens para a capina e por aí  afora. Nessa época ele tinha adquirido uma rural velha com uma estreita faixa amarela pintada em toda a extensão e já sem o banco do passageiro. Ele dirigia sem muito cuidado, quem quisesse é que tinha que sair da frente, a faixa amarela do carro era útil nessa hora, quando avistada servia como alerta, pois o veículo era simplesmente tocado. Quando ele entrava na rural e batia a porta rumo à venda, quem precisasse de carona já tinha que estar sentadinho atrás, do contrário ele não esperava, nem mesmo a mulher ou algum filho com hora de escola. A chácara ficava longe da cidade com um morrão danado pra subir. Ele ia com a rural soltando fumaça e a família correndo, a pé, atrás.

continua...

domingo, 7 de março de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 2

CAPÍTULO II

Já deu até tiro. Foi no prostíbulo da cidade. Mas foi por justa causa, melhor dizendo, foi para lavar a honra do irmão. O irmão tocava um pequeno hotel com a mulher. A mulher conta pro marido que o viajante do quarto tal tinha lhe faltado com o respeito. A confusão estava armada. Sô Nonô, o marido, procurou o irmão, Sô Chiquito. Combinaram tudo. Não se sabe quem animou quem. Ambos deduziram que o safado só podia ter ido para a zona, rumaram para lá com armas em punho. Foram chegando e chutando portas, o libertino quando viu a cara dos justiceiros, ainda mais com armas em punho, pulou da janela com a roupa que Deus deu, já com bala na carne. Foi gritaria de mulher misturado com todo tipo de grito. Quando a dupla viu que acertou quem queria, pulou fora. Tinham que escapar da polícia. Aí teve companheiro que emprestou o carro, teve outro que dirigiu o carro, outro ainda que arranjou esconderijo. Ficaram fugidos uns dias até tudo se acalmar. Quando se apresentaram, já contavam com advogados, o jeito era esperar o processo correr. E veio a data do julgamento, todos os quatro envolvidos foram indiciados. Os dois atiradores, o motorista e o amigo que emprestou o carro. A cidade parou, quem diria, quatro cidadãos em defesa da ordem na família sentados em bancos de bandidos e assassinos. A opinião geral era que se o tiro não matou, só machucou, então tinham que ser perdoados. Mas a família da vítima queria justiça, o descarado alegou que não cantou a mulher do atirador, palavra de um contra o outro, só juiz mesmo. O pior foi que eles saíram condenados. Do fórum direto para a cadeia. Foi um Deus nos acuda. Sô Chiquito enjaulado, preso. Difícil de acreditar. Será que ele esperneou muito? Queriam saber. Nada disso, ele era bravo, mas não era sem idéia, onde já se viu esbravejar com polícia? A bem da verdade, alguns anos depois ele quis matar um sargento, mas aí já é outra história. Voltando à história da condenação; quarenta dias atrás das grades. Teve recurso. A cidade vivia em polvorosa, só se falava do caso, a porta da cadeia virou atração, tinha até fila para visitação. Os condenados ficaram numa cela ampla, longe dos outros presos, camas arrumadíssimas, porta da cela só encostada, sem cadeado. Nunca se viu cela tão especial para tantos iletrados. Foi providenciado até garrafa de pinga, ficava escondida na caixa de descarga, o carcereiro também tomava a dele no final da tarde. Para completar as primazias veio ordem do prefeito: _Televisão para os quatro. Justíssimo. Era época da Copa do Mundo de 70. As famílias de todos assistiram aos jogos na cadeia, não deixou de ser festa. Expectativa geral, segundo julgamento, será que saem livres? Saíram. Seis a um. Por muito tempo Sô Chiquito ficou cogitando quem foi esse um: _ Esse filho da puuuuuta, que absurdo, votou contra eles, chamava-o de sem mãe, os companheiros não estavam preocupados com isso não. A saída do fórum foi uma apoteose. Já no carro, em direção a casa, Sô Chiquito mais parecia político com eleição ganha, onde passava tinha gente na janela acenando. Até hoje a história é contada na família. Neto cresce sabendo que o avô já foi preso.

continua....

HISTÓRIA DE UM BRAVO

Um tempo para outras paragens....

HISTÓRIA DE UM BRAVO

CAPÍTULO I

 Sô Chiquito tinha fama de bravo, de pavio curtíssimo mesmo. Fregueses da sua venda eram bem tratados enquanto não manifestavam reclamação, aqueles que devolviam alguma mercadoria eram colocados  porta
afora sem cerirmônia. Dos caixeiros viajantes somente o representante da Cica, marca de sucesso de vendas, era bem tratado, os outros agüentavam toda sorte de impropérios, era curto e grosso para dizer que não precisava de determinada mercadoria, só os sem juízo insistiam. Os desavisados que o procuravam em casa, depois do expediente para entregar produtos tinham os cachorros abocanhando as calças. Punha palavrão junto: _ Cambada de filhos da puuuuuta! Não respeitam meu descanso, eu lá quero saber se precisam seguir viagem ainda hoje? Nunca se sentou em banco de escola, aprendeu a ler na roça com luz de lamparina tendo a mãe como professora. Quem convivia com ele achava que a escola teria resolvido essa falta de traquejo para tratar as pessoas, para alguns, a teoria da socialização o teria salvo dessa impaciência generalizada. O curioso é que ele tinha o hábito da leitura, era o momento sagrado para o jornal Estado de Minas cuja leitura era após seu almoço de marmita nos fundos da venda. Ai de quem interrompesse essa pequena sesta. Diziam que o jornal tinha um furo no meio que a leitura era só para enganar os bobos,  a intenção era ficar de olho no balcão. Mas isso era folclore, ele lia mesmo. Contudo era um hábito difícil de compreender diante do jeito tosco que demonstrava ser, pode-se dizer que era o avesso do avesso. Só deixou o jornal quando a vista ficou ruim, como achava que médico não sabia nada, comprou uns óculos de camelô. Continuou sem enxergar, com os mesmos óculos, até o fim da vida.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

TER OU NÃO TER...

Ao estacionar o carro vê-se duas alternativas de estacionamento: uma vaga debaixo de uma árvore sombreando bem a área, outra vaga está sob um sol de meio-dia. Dependendo da escolha e principalmente do critério da escolha se deduz as emoções que dominam o motorista. Na primeira alternativa o motorista  sem pestanejar  direciona o veículo para a sombra, a vaga é maravilhosa. Na segunda, aí vem toda à tona um profundo desejo de obter o melhor, o motorista leva em consideração a trajetória do sol dentro do tempo em que ele precisará do carro, talvez após umas quatro horas. Deduz que dentro de pouco tempo a sombra virará sol e aquela vaga sob sol escaldante virará uma bela sombra. A breve dedução e a nova estação fizeram a boa intenção virar pó, a sombra ficou sombra noite adentro e  o carro estacionado na vaga da segunda alternativa, ai,ai, ai, fritava ovo.

O caso acontecido é  bom de análise, retrata a natureza humana  no uso da prudência.O que leva um ser a abrir mão do presente em nome de um futuro hipotético? Negar prazer iminente, mesmo com  riscos embutidos, para dar lugar a  uma certeza sem controle traz a idéia de que se cuidar para o futuro é mais razoável do que merecer um presente dadivoso; fato que se repete  a exaustão ao reservar  uma delícia para  comer mais tarde, sem considerar que alguém pode chegar antes e comer tudo; deixar um vinho maravilhoso para uma oportunidade importante, o tempo passar e  ele virar vinagre; roupa nova dependurada esperando um dia especial, a moda passar ou  a pessoa não entrar na peça.  Expectativas com grandes chances de irem para o brejo.

Quando o agora aponta na direção de um  prazer moral, melhor ser dito, não pode haver prudência interpondo simplesmente porque há grande chance do futuro decidir  pelo não merecimento do prazer. Prazer passado vira caso contado e prazer futuro pode virar caso inventado.