domingo, 28 de março de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 3

CAPÍTULO III


Trabalhava como ninguém, acordava às 5h da manhã e chamava de preguiçoso quem ficava na cama depois disso, botava os filhos para fora aos gritos: _ Tá na hora! Tá na hora! Enquanto todos corriam para acompanhá-lo para a venda ele percorria a chácara. Tratava das galinhas, coordenava o fubá dos porcos, dava as ordens para a capina e por aí  afora. Nessa época ele tinha adquirido uma rural velha com uma estreita faixa amarela pintada em toda a extensão e já sem o banco do passageiro. Ele dirigia sem muito cuidado, quem quisesse é que tinha que sair da frente, a faixa amarela do carro era útil nessa hora, quando avistada servia como alerta, pois o veículo era simplesmente tocado. Quando ele entrava na rural e batia a porta rumo à venda, quem precisasse de carona já tinha que estar sentadinho atrás, do contrário ele não esperava, nem mesmo a mulher ou algum filho com hora de escola. A chácara ficava longe da cidade com um morrão danado pra subir. Ele ia com a rural soltando fumaça e a família correndo, a pé, atrás.

continua...

domingo, 7 de março de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 2

CAPÍTULO II

Já deu até tiro. Foi no prostíbulo da cidade. Mas foi por justa causa, melhor dizendo, foi para lavar a honra do irmão. O irmão tocava um pequeno hotel com a mulher. A mulher conta pro marido que o viajante do quarto tal tinha lhe faltado com o respeito. A confusão estava armada. Sô Nonô, o marido, procurou o irmão, Sô Chiquito. Combinaram tudo. Não se sabe quem animou quem. Ambos deduziram que o safado só podia ter ido para a zona, rumaram para lá com armas em punho. Foram chegando e chutando portas, o libertino quando viu a cara dos justiceiros, ainda mais com armas em punho, pulou da janela com a roupa que Deus deu, já com bala na carne. Foi gritaria de mulher misturado com todo tipo de grito. Quando a dupla viu que acertou quem queria, pulou fora. Tinham que escapar da polícia. Aí teve companheiro que emprestou o carro, teve outro que dirigiu o carro, outro ainda que arranjou esconderijo. Ficaram fugidos uns dias até tudo se acalmar. Quando se apresentaram, já contavam com advogados, o jeito era esperar o processo correr. E veio a data do julgamento, todos os quatro envolvidos foram indiciados. Os dois atiradores, o motorista e o amigo que emprestou o carro. A cidade parou, quem diria, quatro cidadãos em defesa da ordem na família sentados em bancos de bandidos e assassinos. A opinião geral era que se o tiro não matou, só machucou, então tinham que ser perdoados. Mas a família da vítima queria justiça, o descarado alegou que não cantou a mulher do atirador, palavra de um contra o outro, só juiz mesmo. O pior foi que eles saíram condenados. Do fórum direto para a cadeia. Foi um Deus nos acuda. Sô Chiquito enjaulado, preso. Difícil de acreditar. Será que ele esperneou muito? Queriam saber. Nada disso, ele era bravo, mas não era sem idéia, onde já se viu esbravejar com polícia? A bem da verdade, alguns anos depois ele quis matar um sargento, mas aí já é outra história. Voltando à história da condenação; quarenta dias atrás das grades. Teve recurso. A cidade vivia em polvorosa, só se falava do caso, a porta da cadeia virou atração, tinha até fila para visitação. Os condenados ficaram numa cela ampla, longe dos outros presos, camas arrumadíssimas, porta da cela só encostada, sem cadeado. Nunca se viu cela tão especial para tantos iletrados. Foi providenciado até garrafa de pinga, ficava escondida na caixa de descarga, o carcereiro também tomava a dele no final da tarde. Para completar as primazias veio ordem do prefeito: _Televisão para os quatro. Justíssimo. Era época da Copa do Mundo de 70. As famílias de todos assistiram aos jogos na cadeia, não deixou de ser festa. Expectativa geral, segundo julgamento, será que saem livres? Saíram. Seis a um. Por muito tempo Sô Chiquito ficou cogitando quem foi esse um: _ Esse filho da puuuuuta, que absurdo, votou contra eles, chamava-o de sem mãe, os companheiros não estavam preocupados com isso não. A saída do fórum foi uma apoteose. Já no carro, em direção a casa, Sô Chiquito mais parecia político com eleição ganha, onde passava tinha gente na janela acenando. Até hoje a história é contada na família. Neto cresce sabendo que o avô já foi preso.

continua....

HISTÓRIA DE UM BRAVO

Um tempo para outras paragens....

HISTÓRIA DE UM BRAVO

CAPÍTULO I

 Sô Chiquito tinha fama de bravo, de pavio curtíssimo mesmo. Fregueses da sua venda eram bem tratados enquanto não manifestavam reclamação, aqueles que devolviam alguma mercadoria eram colocados  porta
afora sem cerirmônia. Dos caixeiros viajantes somente o representante da Cica, marca de sucesso de vendas, era bem tratado, os outros agüentavam toda sorte de impropérios, era curto e grosso para dizer que não precisava de determinada mercadoria, só os sem juízo insistiam. Os desavisados que o procuravam em casa, depois do expediente para entregar produtos tinham os cachorros abocanhando as calças. Punha palavrão junto: _ Cambada de filhos da puuuuuta! Não respeitam meu descanso, eu lá quero saber se precisam seguir viagem ainda hoje? Nunca se sentou em banco de escola, aprendeu a ler na roça com luz de lamparina tendo a mãe como professora. Quem convivia com ele achava que a escola teria resolvido essa falta de traquejo para tratar as pessoas, para alguns, a teoria da socialização o teria salvo dessa impaciência generalizada. O curioso é que ele tinha o hábito da leitura, era o momento sagrado para o jornal Estado de Minas cuja leitura era após seu almoço de marmita nos fundos da venda. Ai de quem interrompesse essa pequena sesta. Diziam que o jornal tinha um furo no meio que a leitura era só para enganar os bobos,  a intenção era ficar de olho no balcão. Mas isso era folclore, ele lia mesmo. Contudo era um hábito difícil de compreender diante do jeito tosco que demonstrava ser, pode-se dizer que era o avesso do avesso. Só deixou o jornal quando a vista ficou ruim, como achava que médico não sabia nada, comprou uns óculos de camelô. Continuou sem enxergar, com os mesmos óculos, até o fim da vida.