domingo, 28 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA V

A menina se interessou em ficar mais próxima do avô a partir dos nove anos de idade, ele contava com uns sessenta e nove. A figura imponente, a capacidade de impor grande respeito aos dezesseis filhos e dezenas de netos e a maneira simples de vida na roça levaram a menina a imaginar uma convivência mágica com aquele avô rústico, sem meias-palavras e de poucos dengos. A solução encontrada foi rumar para a fazenda nos períodos de férias, mesmo ciente que a temporada significaria alguns desconfortos como ficar à luz de lamparina, não ter a companhia de nenhuma outra criança, tomar banho na bacia, dormir com as galinhas, acordar com os galos (a janela do quarto no qual dormia se abria para o galinheiro) e, evidentemente, obediência régia.

Fazia parte ainda desse rol um hábito para o qual não havia chance para negociações e se transformara em verdadeiro sacrifício para a menina: era a hora do terço. Ocorria por volta das sete da noite, dentro do quarto dos avós os quais ficavam recostados na cama já vestidos para dormir e com os terços em punho, enquanto os outros rezadores se postavam ajoelhados ao lado cama. A única tia presente, visto que os outros quinze filhos já tinham se esparramado, era quem puxava a ladainha. A reza não acabava nunca e a certa altura de dor lancinante nos joelhos os pernilongos aproveitavam as canelas aquietadas e davam picadas fulminantes. Por estar diante de um rito religioso seria inaceitável espantar os bichos com tapas e volteios enquanto eles se banqueteavam. Ver os moradores apresentarem certa calma diante dos sugadores era admirável, justificavam ao dizer que sangue novo atraía maior quantidade de mosquitos por isso os visitantes sofriam mais. A menina acreditava. Daí quando surgia algum calombo assustador era oferecida uma latinha redonda, amarela, com um creme rosado. Ao ser esfregado na ferroada proporcionava o milagre do alívio imediato. Todavia, só se usava o creme nos casos especialíssimos, pois toda mercadoria adquirida na cidade tinha seu uso comedido. A menina contava que os esforços para cumprir as obrigações de visitante seriam pequenos entremeios diante da rica jornada em companhia do seu velho avô.



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sábado, 20 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA IV



Fazer visitas aos avós com a família toda era costume sem muitas novidades por haver uma respeitosa cerimônia por parte dos filhos para com os velhos pais, ali, assuntos polêmicos eram evitados. Já na chegada assistia-se a uma cumprimentação na qual os filhos tiravam o chapéu, quando era o caso, e faziam uma mesura para o beija-mão acompanhado do pedido de benção. Após esse andamento solene sentavam-se no comprido banco na varanda para início das conversações. A descontração dava-se quando a meninada disputava uma moeda do pai para que fosse ofertada aos santos dispostos em uma pequenina capela que dava para a varanda. Havia sempre um pratinho de porcelana à disposição para a oferenda a qual após um tempo era doada para a paróquia da cidade. Poucas travessuras podiam ser feitas naquelas terras. A meninada já saia de casa com várias recomendações de exemplar comportamento na casa dos avós. A graça então se resumia em andar pelo quintal para catar frutas com os primos, apreciar as quitandas e ouvir os causos dos adultos.




O avô era alto e tinha um corpo esguio graças ao trabalho bruto. Usava uma rústica correia ajuntando a calça na cintura, andava descalços o tempo todo e não gostava de viajar de carro, dizia não se sentir bem enfiado dentro de um veículo. Se sua presença fosse extremamente necessária na cidade, a viagem era feita a pé ou de carroça. Costumava falar muito alto, a ponto da vozeada se espalhar por muitas lonjuras. Tal alarde provocava idéias sobre possíveis desavenças nas suas paragens àqueles que estavam próximos das porteiras de entrada. Para se ter certeza se era uma boa hora para se chegar, sensato seria esperar pelo final da gritaria: se surgissem gargalhadas era somente mais um causo da roça, se prevalecesse silêncio, melhor fazer meia-volta rumo à cidade. A confusão provinha pelo hábito, e porque não dizer da notável capacidade, que o avô tinha para narrar histórias em altos brados empregando dramaticidade às vozes dos personagens envolvidos. Se necessário fosse, trocava a entonação de acordo com o embate, surgindo então, diálogos ágeis e quase reais. Ao final da narração, sendo caso de comédia ou não, o avô se encarregava de puxar as gargalhadas incentivando as dos ouvintes. Reconhecia-se que a graça estava na reapresentação feita e não no fato ocorrido.

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domingo, 14 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA III



Completada a descida chegava-se à segunda porteira dando acesso ao cercado do curral já livre do gado, mas não dos sinais da recente presença deles espalhados pelo chão. Ao descer da condução, que ali ficava estacionada, olhar onde se pisava era necessidade premente. Por completar a chegança faltava abrir a terceira e última porteira passando assim para dentro da área da casa. Havia ali um trecho calçado com pedras roladas as quais facilitavam a limpação dos sapatos. À medida que iam caminhando, as visitas esfregavam os pés pelo piso de pedras até a entrada da varanda, costume que indicava educação conjugada com certa cerimônia. À esquerda da varanda uma tímida plantação de café, suficiente apenas para o consumo da casa, à direita um pé de jatobá varando o céu de tão majestoso. Seguir seu longo tronco com os olhos fazia doer o pescoço, porém valia a pena, a copa do jatobá se confundia com as nuvens andejas no céu dando a ilusão de movimento.

Diziam que tão nobre árvore era centenária, atraía a criançada logo na chegada. Encher as mãos com seus frutos era a primeira brincadeira, mesmo cientes de que eram mais engraçados do que gostosos. Dava trabalho quebrar as cascas bastante duras, eram necessárias algumas pedradas surgindo daí sementes recobertas com uma massa verde, muito seca, sem gosto e de cheiro forte, porém muito usada entre a meninada para cobrir os dentes proporcionando uns sorrisos matreiros para os desavisados.





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sábado, 6 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA II



Ao se aproximar do único trecho da estrada em que havia um barranco de terra vermelha era sinal que o destino estava bem próximo. A julgar pelas paisagens ao redor não era natural aquela torrão vermelho destacando-se ao longe, contudo sua serventia era aliviar os ânimos dos passageiros, quase sempre amontoados nos veículos, para a chegada.  Além disso, o vermelhão sinalizava o início de uma subida que desnorteava cavalo, era bom se prevenir. Pois se o bicho estivesse arrastando carroça carregada com gente e apetrechos a penúria era muita. Momento certo de arrepiação nas orelhas, suor no lombo, patinação para lá e cá, única forma do animal romper a elevação. Se fosse o carro, o motor urrava soltando fumaça. Vencido o morro chegava-se a um platô que dava início a descida até a sede. Via-se então a primeira porteira a ser aberta, momento de menino pular da condução, soltando correria para abrir o ferrolho. O gosto era fazer da porteira montaria e assim dar um breve passeio. Nos dias de muito humor largava-se o menino da porteira para trás e ele com desespero nas canelas tentava apanhar a condução novamente, era zombaria pura.

Já dentro da propriedade, ia-se devagar, momento de descer a estradinha fina, parecia feita de rastro de  gente e de animal, pois no centro havia mato o qual provocava certo barulho no fundo do carro. Dali começava-se a avistar o telhado da sede dentre as árvores. Ao longe o que a vista alcançava parecia uma pintura, o rio represado com suas pequenas ilhas assemelhava-se a um mapa. As águas mansas e o céu se imbricavam no horizonte, era uma beleza só.

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terça-feira, 2 de novembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA

I

A fazenda dos avós distava poucos quilômetros da cidade, talvez uns seis, mas para uma menina parecia uma longa viagem. Não havia caminho mais bonito, o percurso era feito normalmente de carro, mas melhor mesmo se o passeio fosse de carroça. A estrada de terra era estreita, bem arborizada, parecia um túnel verde com os barrancos cobertos de plantas. Não vivia só de buracos, havia trechos de chão lisinho com fina camada de areia fazendo com que a carroça deslizasse com o galope do cavalo, daí era só abrir o sorriso e aproveitar a gostosura. Quando de carro, o motor parecia desligado de tão suave. No carro a melhor brincadeira da meninada era ganhar a janela, colocar a cabeça para fora e apostar que galho algum acertaria a cara, nem sempre se ganhava essas apostas. A demora em perceber um galho se aproximando garantia uns arranhões além dos risos dos companheiros.


O rio parecia querer brincar ao seguir a estrada todo o tempo. Havia trechos em que a água insistia em serpentear as beiras fazendo a estradinha se apertar nas curvas trazendo beleza e medo. Momento de histeria era quando se aproximava a travessia da ponte velha e estreita; dava um frio na barriga, a boca calava e aí se corria o olho para baixo sem querer olhar, mas sem querer perder a grandeza da visão. Era de relance que se contemplava uma água escura com promessa de muita fundura, de morte certa no caso de queda. Uma dúvida se instalava naquele instante: será que a ponte vai cair logo agora? Seguindo em frente com menos temor, somente não desejando sorte pequena de topar com outro veículo. Se tal fato ocorresse um teria que se enfiar mato adentro, subir barranco, escapar de precipício para dar passagem ao outro. Fazer cavalo que puxava carroça entender essa manobra era um Deus nos acuda, o bicho dava pinote e fincava na teimosia, perigava muitas vezes até cair rio abaixo.

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