terça-feira, 31 de janeiro de 2012

UM HOMEM DE ABÓBORAS


Sempre que vou a Diamantina e me encontro com Antonio Neves em alguma esquina, não faço cerimônia, vou logo pedindo a ele para contar o caso das abóboras mais uma vez. Dizer que ele está cansado de contar a mesma história não chego a tanto por que no final do relato vejo os olhinhos dele brilhando de contentamento. O Antonio deve estar beirando oitenta anos, eu o conheço há mais de três décadas, juntando tempo ali, diminuindo tempo aqui, imagino o acontecido ter ocorrido há cinqüenta anos e lá se vão pedradas. O que faz um caso despertar risos durante tanto tempo? Só pode ser devido ao narrador do caso, pois o Antonio faz de conta que foi humilhado e coisa e tal, porém ele apenas transformou em graça um acontecido que tinha tudo para enfezá-lo. E assim, atendendo ao pedido, Antonio Neves mais uma vez, conta:

_Um sábado após o almoço, Leandro, Fausto, na época um meninote, e eu saímos de Diamantina a caminho da fazenda do Sr. Costa, pai de Leandro, em Rio Manso. O trecho de quarenta quilômetros de distância parecia ter o dobro, pois a estrada era coberta de buracos, costelas e poeira fazendo da viagem uma peleja só. Pois bem, chegando à entrada de Rio Manso havia a venda do Domingos, um local de parada costumeira, bom para esticar as canelas e beber uma água fresquinha. O vendeiro quando viu a figura impoluta do Leandro descendo do carro ficou todo empolgado e contente da vida, pois afinal era o filho de um dos mais abastados comerciantes de Diamantina e ainda por cima grande amigo do Presidente Juscelino. Domingos foi logo dizendo:_ Mas, que prazer dotô, comé que vai? Vão chegando. No que posso servir?
 Leandro cumprimentou, perguntou pela família e disse:
_Queremos mesmo é só água fresca, Domingos, a poeira está de matar. O Domingos logo apanhou a bilha d’água e encheu nossas canecas. Enquanto isso a prosa correu solta, foi um falatório sobre a escassez de chuva, sobre achados de diamante e por aí afora. Passado um tempo o Leandro iniciou as despedidas: _ Obrigado Domingos, vamos embora antes que fique tarde, voltaremos para Diamantina hoje mesmo. Porém, já na saída, o Domingos me chamou no canto e disse:_ Antonio, passa cá na volta, vou reservar um agrado. Pronto, fiquei alegre, uai! Entrei no carro e anunciei aos companheiros a promessa do Domingos e o compromisso de passar na venda na volta. A imaginação correu solta: que tipo de agrado estaria nos esperando? Na minha cabeça o presente seria uma roda de lingüiça acompanhada de um litro da cachaça da boa. Leandro apartou dizendo que só podia ser uma galinha gorda para cada um, já Fausto apostou em um lombo ou pernil já no ponto de apreciação. Assim seguimos em frente nessa distração. A tarde veio e eu estava doido para parar logo na venda para apanhar a nossa prenda. Na chegada houve mais um tantinho de festa, até que falei: _ Somos bem mandados, Domingos, cá estamos. Foi aí que Domingos cochichou com a filha para buscar algo que estava na casa que ficava nos fundos da venda. A moça demorou bem pouco, apareceu com duas abóboras bem grandes nos braços, mais conhecidas como abóboras-de-porco. Domingos me entregou as ditas e disse todo orgulhoso:
 _ Óia sô, que beleza!
 Sem querer demonstrar desapontamento, falei:_ Oh! Domingos, fico deveras agradecido, mas só para esclarecer: é uma para mim e outra para Leandro, não é?
O Domingos então veio com essa: _Que isso Antonio, não fala uma coisa dessas, assim você me põe sem jeito. E Leandro é lá homem de abóboras?
E foi assim, desse jeito, que tomei conhecimento de que eu era um homem de abóboras. E tem mais, até as pedras de Diamantina sabem do ocorrido.

domingo, 16 de outubro de 2011

UMA MENINA NA ROÇA XI



A menina passava o dia atrás da tia. De cá prá lá, de lá prá cá, era um sem fim danado. Trabalhar parecia ser a única ilusão para uma moça da roça. Se a tia pensava em amores, não dava a perceber, mesmo sendo moça casadoura. Após o café, ela enchia a trempe do fogão com adiantados para o almoço. Em seguida iniciava a varrição da casa, desde a varanda até a cozinha era chão prá danar. O terreiro ao derredor ganhava varredura também. A confecção da vassoura tomava tempo. Feita com um cabo semelhante ao de enxada era recheado com ramos até formar saia bem farta. Além de mato adequado, carecia fazer a amarração com cipós de modo que os ramos ficassem firmes e em simetria. À medida que a vassoura arrastava para longe as folhas secas caídas pelo chão crescia no ar um perfume de mato recém-apanhado. Era lida e mais lida: aguar muitas plantas, cuidar da horta, alimentar galinhas, lavar roupas na bica, passá-las com ferro a brasa, fazer quitandas e doces. À noite a tia bordava e costurava à luz das lamparinas, não se queixava e parecia não se cansar.


Para feitura dos doces havia no chão, em um canto bem perto da porta da cozinha, um arremedo de fogão. Nos tachos enormes, a tia ia misturando as frutas com o açúcar usando um pequeno remo. Horas e horas de muita quentura na pele e força nos braços até a calda borbulhante secar. A menina arregalava os olhos diante das delícias que iam surgindo, tinha preferência pelo doce de laranja da terra. A intenção da tia diante dessa labuta era fazer doces em barras, ora goiabada, ora laranjada, para vendê-las na cidade. Ficavam para o consumo umas poucas. Foi aí que brotou na menina o desejo de possuir uma barra de doce de laranjas só para ela. Queria levar para casa ao final da estadia para se fartar. Com um olho comprido na pilha de barras acondicionadas e prontas para serem despachadas à cidade, ela matutava um jeito para conseguir uma gostosura daquelas. No dia seguinte, de manhãzinha, enquanto a tia destrinchava uma galinha gorda para o almoço, a menina tomou coragem ao ver surgir um momento adequado para o pedido. Chegou até a pia no instante em que a tia retirava de dentro da galinha as entranhas, junto veio um cacho de ovas de variados tamanhos, dentre elas um semi-ovo. Olhou para aquilo com nojo e lançou logo o pedido: “tia, gostaria muito de ganhar uma barra de doce para levar para casa”. Talvez querendo evitar uma negativa direta ou com intenção de fazer graça, a tia impôs uma condição: “ganhará uma barra de doce somente se você engolir, agora, a maior gema desse cacho”. A menina não esperava por aquilo; ou se esquecia do doce ou enfrentava aquele quase-ovo. Sem pensar muito, topou. Tirou daquele emaranhado de tripas a bola vermelha, mole e viscosa. Jogou na boca e em instantes sentiu uma explosão quente e um gosto ruim se espalhando e descendo goela abaixo, a cabeça quis até estalar. E, pois, acabou a penitência.  De posse da barra de doce, conquistada a duras penas, a menina aprendeu que na roça era desse jeito. Tudo era custoso mesmo.




domingo, 13 de março de 2011

UMA MENINA NA ROÇA X


O café por lá colhido e torrado era moído na despensa localizada nos fundos da cozinha. Nessa peleja a menina ajudava, fazia força para girar a roda do moedor de ferro e ver sair um pó grosso e perfumado. De manhãzinha a menina sentia o cheiro da coa antes mesmo de se levantar, era adoçado com rapadura, servido na canequinha esmaltada acompanhado por quitanda e queijo, agradava por demais.

As atividades na roça começavam antes do dia se anunciar e terminavam antes da noite apontar. Quando a tardinha chegava era água fumegante nas chaleiras para os banhos na bacia, lamparinas nos pontos, janta pronta. O fechamento de portas e janelas antes do lusco-fusco era necessário para evitar os insetos, porém de pouca valia, os bichos apareciam de qualquer maneira. Só muita valentia para agüentar as ferroadas. Após o jantar, o avô trazia um emaranhado com vagens de feijão, colocava pelo chão da cozinha. Para ele era ocasião de divertimento. Avô e menina sentavam em volta de uma gamela para a debulhação, os dedos finos da menina chegavam a ferir, entretanto não acontecia reclamação. Sabia que naqueles instantes teria os momentos mais afetuosos com o avô. Ele lhe dedicava casos e histórias, julgados por ela importantes por serem relatos de sua jornada. Ignorava se a tomada de consideração por parte dele era por falta de ouvinte com topete de gente ou se era por ter tomado gosto pela neta. Ela se regalava.

A menina não soube ao certo de quem tomou o lugar na obrigação de lavar os pés do avô quando ele sinalizava o final da debulhação. Por andar para cima e para baixo somente descalços, carecia de um lava-pés caprichado antes de ir para a cama rezar o terço. A tia preparava a água esperta na bacia e a menina começava o serviço. Ele possuía pés enormes, vermelhos, e com as plantas dos pés se assemelhando a couro de boi curtido, a pele era dura e áspera. A menina usava uma bucha nascida na cerca juntamente com o sabão caseiro à base de sebo  para esfregar com a força toda que tinha, rapidamente a água ficava escura e espessa. A lavação só terminava quando ele determinava. Se havia um banho de bacia no quarto completando a limpeza, acontecia com muita discrição.

Continua...

UMA MENINA NA ROÇA IX

À porta da cozinha, bastava entrar chamando por gente. Por estar próxima a hora do almoço, certo encontrar avó e tia picando as coisas. O avô estaria cuidando de roça ou de bicho. A menina era bem recebida, porém sem muitos afagos, eram cumprimentos, pedidos de notícias e no mais a sacola com as mudas de roupa era levada para o quarto perto da cozinha onde ela dormiria. Quarto de visita importante dava para a sala, era bem caprichado, tinha uma bacia de louça florida com um jarro dentro sobre uma mesa, a cama sempre esticadinha. Não era permitida graça lá dentro não.

Para olhos de menina pequena a cozinha parecia muito grande e com poucos apetrechos. O chão era de terra batida bem varridinho, o fogão a lenha reinava na cozinha, podendo ser rodeado belas beiras. Na segunda importância vinha o banco de madeira, de tão comprido parecia arriado ao meio, acompanhava a extensão da parede a qual possuía uma janela aberta para o jardim. Completava o cômodo uma pequena mesa de apoio, um armário guarda-louça de madeira, pintado de verde, comprido quase até ao teto e uma pia com a única torneira da casa. Os acontecimentos na cozinha enchiam os olhos da menina, suficientes o bastante para o desejo de menos meninice naqueles períodos de férias. Não se punha olho nem boca em quase nada que não fosse produzido pelos avós e tia. Além dos sabores, cores e aromas, a lida dos três, praticamente indiferentes ao mundo das cidades, impressionava a menina. Sem possuírem rádio a pilha, as notícias chegavam atrasadas e sem muita importância. Já na cama, esperando sono chegar a menina ideava que se o mundo acabasse e sobrasse somente aquele torrão poucas faltas atravessariam.


Continua...

domingo, 20 de fevereiro de 2011

UMA MENINA NA ROÇA VIII

A água que alimentava a bica vinha de uma nascente longe das vistas e das canelas. Corria por um córrego fino que atravessava muitas terras e chegava a casa pelo alto ao longo da alameda das mangueiras. Ao passar por ali a menina ouvia o burburinho suave da água cumprindo sua sina. Com a curiosidade aguçada, por algumas vezes a menina subira o pequeno aclive para acompanhar o ritmo do córrego e quem sabe descobrir algo novo. Na primeira dessas incursões algo não muito agradável se revelou: ficou verdadeiramente chocada quando deu de cara com frutas e folhas apodrecidas no fundo e beiras do córrego, se diluindo tomadas pelo limo e se entregando às águas que jorravam inocentes lá na porta da cozinha e que era usada para tudo e por todos sem indagações. Para a menina foram necessárias várias vistorias ao longo do córrego para que o fato de ver somente frutas e folhas se desmanchando na água se tornasse aceitável. Com sede e diante da bica, não restava muito a fazer: enchia as mãos em conchas com o líquido azul e geladinho e levava à boca. Simplesmente procurava não pensar na água resvalando na decomposição da natureza. Procurava acreditar que nas mãos ela se tornara doce e pura.

Continua...

domingo, 19 de dezembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA VII


Após uma doce viagem a chegança se dava pela casa do tio que morava na chácara bem próxima da fazenda. A menina apeava da carroça, mexia com os primos pequenos, um deles preso dentro de um caixote, ou melhor, chiqueirinho, sorrindo para tudo; despedia dos tios e  seguia para a fazenda dos avós. Havia somente uma alameda, sombreada por frondosos pés de manga, separando as duas moradas. A menina atravessava esse trecho tomada de sustos por ouvir os ruídos no mato. Eram os calangos aprontando correria pelo chão atulhado de folhas secas fugindo às pressas para os troncos das árvores, pareciam bem mais apavorados com a visita inesperada. Os pássaros também assustados deixavam suas frutas despencarem pelo chão, derrubavam outras e saiam em debandada. Mesmo sendo um percurso pequeno essa algazarra era mais do que suficiente para aumentar o medo, sobretudo por haver uma pequena curvatura no caminho tirando a visão das duas casas trazendo aparente solidão em meio a tanto mato. A imaginação solta e tomada pelo temor  judiava da menina e  fazia com que os rabos das lagartixas virassem cobras;  onça, lobo  e  outros bichos piores espreitassem por perto prontos para atacá-la. Tudo isso porque era ali, do lado de baixo da alameda, o início de um grande pomar formado por árvores frutíferas bem antigas e por isso muito altas e folhosas. Quase todo o arvoredo esbarrava no céu. A menina apertava os passos para chegar rápido e em segurança até a casa, seu coração sossegava somente após ver a bica jorrando no terreiro da cozinha.


Continua...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

UMA MENINA NA ROÇA VI



Dois tios moravam na vizinhança da fazenda e diariamente comercializavam a produção de suas roças na cidade. Sendo que um deles ajuntava também os produtos da fazenda do velho pai fazendo com que a carroça saísse abarrotada de mercadorias, sobrando lugar apenas  para um passageiro junto ao condutor. Havia latões com leite, verduras, frutas, ovos, queijos, doces, mel, rapaduras, cachaças e até galinhas resmungando estrada afora. Já na entrada da cidade a carroça encontrava os primeiros fregueses, em pé nas portas das casas, atraídos pelo som do tropel do cavalo no calçamento pés-de-moleque. Enquanto a comercialização ocorria, rolava risos e prosa entre vendedor e compradores, os acontecimentos dos arredores eram comentados a rodo: quem morreu, quem nasceu, quem casou, quem mudou! Era assim que as notícias corriam.

Quando janeiro chegava a menina arrumava a sacola de roupas e caminhava ao encontro da carona na carroça. O ponto de parada, tanto na chegada da roça quanto na saída, era a casa de uma das tias da cidade. Ali era o local onde o leite seria novamente coado e distribuído pela vizinhança. Quando a carroça chegava já encontrava formada desde muito cedo uma fileira de leiteiras e canecos à espera do leite. Era a maneira prática de segurar lugar sem necessidade de estar presente. A atitude se justificava, visto que na época de seca, quando o leite minguava, as últimas vasilhas às vezes ficavam vazias.

Na volta para a roça a carroça ia leve e solta. Levava somente mantimentos não produzidos por lá,  como o açúcar para os doces, arroz, macarrão, ferramentas, remédios e miudezas em geral. Pegar carona nessas idas e vindas era um divertimento que a menina esperava com satisfação. Ela se deliciava ao ouvir as histórias dos tios pela estradinha, ver de perto cada pedacinho de chão, beber água geladinha na nascente  e ainda ouvir os ecos dos pássaros soando por cima do rio e nos morros.

Continua...