segunda-feira, 24 de maio de 2010

EPÍLOGO

Ainda hoje restam dúvidas entre seus pares a respeito das verdadeiras razões que levaram Sô Chiquito a manter as chamas vibrando no fogão ao longo de várias noites, mesmo estando na iminência da morte: estava ali queimando o medo ou atiçando a fé? Ou apenas fez uso da sua evidente determinação para cumprir o desejo de continuar ativo? Essa hipótese é a mais considerada, visto que, além de mostrar coerência com o passado de labutas, esclarece que, para ele, o processo da vida consistia somente de desafios brutos. Embora existam várias conjecturas, sua atitude final continua repleta de significados.

Após esses dias ele se foi. Antes de ficar velho, antes de virar menino. Sô Chiquito não pediu reza e não puxou do terço, contudo se rezou em algum momento foi por meio dos gravetos atirados, um após outro, por várias noites seguidas. Se alcançou alguma graça divina da qual tirou acalanto ele a viu através das labaredas durante suas noites insones.

Seus feitos e acontecidos são comentados pelos arredores e fica, a saber, se alguns casos ainda estão por vir à tona. Porém, prevalece um relativo consenso: ele nada viu ao seu redor por acreditar não existir maiores importâncias além das obrigações, invariavelmente impostas por ele mesmo, a cumprir. Um exemplo disso foi a opção escolhida na ocasião em que um dos filhos queimava em febre ao mesmo tempo em que uma vaca passava mal por envenenamento. Ele no curral ficou. Perguntado se não se preocupou com a doença do filho, respondeu pragmático: _ Na casa tinha muita gente que sabia cuidar de gente, para cuidar da vaca só tinha eu mesmo!

O tempo passou e, generosamente, embaçou o que não foi comédia. Pinçar da trajetória humana somente o que não dói não deixa de ser uma boa forma de eternizar o que faz bem.

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quarta-feira, 19 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 14

CAPÍTULO XIV


Tempos depois Sô Chiquito caiu doente com doença grave. Os dias iam e viam e ele só piorando. De certa forma insistia para dar conta de alguns afazeres, andava com o apoio de um bastão com o qual saltava até córrego. Era uma agonia acompanhar seus exageros nas atividades. Entretanto, a partir do momento em que caminhar, mesmo que capenga, ficou impossível, passou a fazer uso de uma cadeira de rodas e era desse modo que vistoriava o curral e, para desespero dos acompanhates, enchia os aros da roda com estrume. Quando até esses passeios foram ficando difíceis, passou a exigir que viessem até ele, dia a dia, para relatar o que ocorria nas suas terras. Iniciou-se dentro de casa um leva-e-traz de notícias, um entra-e-sai de bichos e produtos; alvoroço em demasia só para lhe dar alegria. Nascimento de bezerro era festa, o bicho era levado no colo para ele apreciar; pintinhos recém-saídos das cascas chegavam a ele em cestas assim como peixes graúdos pulando no balaio; colheita de quiabo, alface, abóbora, beterraba, cenoura, enfim, tudo que ele tinha cuidado e plantado lhe era apresentado.

Porém, quando a noite chegava agrado nenhum lhe apetecia. Ocasião em que lhe surgiu a aflição de desejar varar a noite em volta do fogão à lenha atiçando o fogo até o dia começar a clarear. Reclamava que não tinha sono e que ali era o melhor lugar de ficar, olhando as brasas, seguindo as labaredas. No calor do dia colocava as pessoas ajuntando gravetos e lenha, queria estoque perto dele, não podia faltar combustível para o seu fogão. E ficou noite após noite alimentando o fogo. Somente com muita insistência ia para a cama, mesmo assim quando pegava no sono acordava assustado querendo saber se tinham deixado o fogo apagar. Houve noite em que sua obstinação em manter as chamas acesas foi tamanha ao ponto de querer sair da cama, e com dificuldades foi ver o fogão, cismou que o fogo estava apagado.

Continua...

sábado, 15 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 13


CAPÍTULO XIII

Havia centenas de galinhas soltas pelo quintal sujando tudo e fazendo ninhos nos lugares mais inesperados, porém assistir ao trato, acompanhar aquele alvoroço se reunir rendia graça. A distribuição do milho era com horário estabelecido e respeitado, critério rígido para a disciplina da criação. Sô Chiquito usava uma mesma cuia como medida, mesmo tendo aumento no número das galináceas. Alegava que tinha que ser pouco milho visto que se eram galinhas caipiras tinham mais é que pastar. Depois de muito observar, ele concluiu que havia injustiça no terreiro, pois algumas galinhas espertas e danadas não deixavam outras mais lerdas incharem o papo. Inventou um troço como maneira de equilibrar a quantidade de ração entre elas. Baseava-se em encher uma garrafa pet transparente com milho, tampar bem e atirar no meio daquele mundo de penas. Enquanto as galinhas gulosas bicavam desvairadamente a armadilha ele atirava a cuia com milho em direção às outras magrelas, assim foi controlando as porções para que todas engordassem por igual. Mesmo sendo uma cena de sadismo, não deixava de ser divertida, a meninada adorava. Ainda assim freqüentemente ele exarcebava nos métodos educativos com as galinhas e continuava inventando sistemas.

Um dia estava ele atraindo as bichinhas como de costume: _prruuuu, prrrruuuu. Elas saíram dos seus cantos e ninhos, vieram correndo, felizes, com bico atirado para frente, asas abertas. Sô Chiquito começou jogando o milho por uma das mãos, na outra manteve um pau escondido por detrás das costas. Inquirido pelo genro, que a tudo acompanhava o porquê do porrete, ele desabafou: _ Tem uma danada que não vai atrás da garrafa e fica que nem metralhadora com seu bico certeiro em todo o milho, come muito mais que as outras, estou dando umas pauladas na testa desta esfomeada para ver se ela aprende! Não aprendeu. Numa das lições a pobre da galinha ficou tão tonta que acabou indo pra panela.

Continua...




segunda-feira, 10 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 12


CAPÍTULO XII


Seu Chiquito não gostava de possuir cavalos e tampouco montá-los, justamente por isso percorria a fazenda na sua velha camionete usando trilhas ou mesmo passando  por cima do pasto baixo. Um dia, ao fazer um itinerário mais distante, levou consigo um rapazinho apenas como companhia. E lá foram eles. A certa altura do trecho chegaram a uma velha tranqueira, o rapaz, que já era um motorista bom, achou o espaço estreito para carro. Com jeito, disse que era melhor parar e avaliar. Ainda no carro estudou um pouco a questão e avisou o motorista que não dava para passar de jeito nenhum. Seu Chiquito atrás do volante, com sua característica impaciência, protestou dizendo que daria para passar sim.  Iniciou-se  uma teimosia: Dá, não dá, dá, não dá. O rapazinho saiu do carro, foi para frente da passagem, mediu a largura da porteira com o olho e pensou (só pensou): não passa; principalmente com esse motorista atirado. Com muito jeito, disse: _Sô Chiquito, se eu fosse o senhor não tentaria passar! O velho fazendeiro não era homem de se convencer fácil, nem tão pouco dava braço a torcer. Cansou do lenga-lenga. Acelerou o carro como se houvesse um morrão a vencer, passou pelo vão da velha porteira num rompante só espalhando cacos de retrovisor por todo lado, rasgando as laterais do carro naquela estreiteza e embaçando tudo com fumaça. O rapazinho assustado e com os olhos esbugalhados ainda escutou :_Não falei que dava?

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domingo, 9 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 11


CAPÍTULO XI


Continuava a dirigir mal. A bem da verdade nunca se soube se alguém lhe ensinou a dirigir. Problemas na visão não restavam dúvidas que ele tinha, pois teimava em continuar a usar os óculos de camelô. De algum modo possuía carteira de motorista, ficou com a mesma por décadas, nunca renovou. Nos períodos de fiscalização na estrada de acesso à cidade todos o avisavam para se aquietar na roça, evitar problemas. Havia um guarda camarada, ciente da situação, que lhe dava uma pista em qual dia deveria se recolher por causa da blitz. Mesmo assim foi pego pelos rodoviários algumas vezes. Alegava, indignado, que estava trabalhando, saiu apressado e por causa disso os documentos tinham ficado para trás. Fazia teatro mostrando as roupas sujas, botas enlameadas, chapéu suado. Se os guardas fossem de fora da cidade lhe davam multas sem conversa, aí ele esperneava, era certo. No caso de patrulha conhecida era mais fácil, sobretudo após a demonstração do labor. Conseguindo a compreensão dos guardas, agradecia a liberalidade oferecendo umas verduras recém-apanhadas e a promessa de umas galinhas gordas, dizia que era só passar na fazenda. Nesse caso os guardas se contentavam em buscar as prendas e deixar Sô Chiquito prá lá. Conseqüentemente a ilegalidade da carteira vencida comemorava mais um aniversário.

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terça-feira, 4 de maio de 2010

HISTÓRIA DE UM BRAVO 10



CAPÍTULO X


Era uma peleja para deixar os netos pescarem quando eles desejavam. Aliás, poucos eram os escolhidos para tal deleite, pois tempo de pescaria era determinado pelo Sô Chiquito. Configurava ocasião rara por depender de vários fatores impostos pelo do dono da lagoa, como por exemplo, se a época estava boa para pescaria, segundo sua análise; se o momento era adequado para os peixes, segundo seu olho; se os anzóis eram pequenos, nesse caso havia necessidade da apresentação de prova material; se a lua era cheia e algumas outras conjecturas. Caso o candidato a pescador não fosse da família deveria ainda lhe ser simpático. Conjugar os pormenores exigidos correspondia a um evento único para muitos. Para início de conversa os netos cumpriam uma exigência suplementar que era trazer os peixes pescados para ele averiguar, após o que ele recolhia os melhores para a janta dele, mandava jogar alguns de volta na lagoa para darem uma engordada e deixava que levassem uns lambaris. Era insatisfação de neto garantida. Ainda assim os meninos gostavam de ficar na diversão. Depois de um tempo de peixes confiscados, Sô Chiquito notou que essas pescarias estavam muito minguadas de peixes, quis descobrir por quê. Inquiriu os pescadores: _O quê ta acontecendo com ocês? _Ficam lá na beira d’água um tempão danado, lagoa cheia de peixes e nesse balaio não tem nada? Os netos tentaram sair pelo tangente, disseram não entender aquela sumida dos peixes, coisa e tal. No que ele respondeu:_ Procura debaixo do caixote, aquele lá que ocês tavam sentados, pescaria boa ta é lá, só tem graúdos, busca tudo, quero dar uma olhada!

Continua...