domingo, 16 de outubro de 2011

UMA MENINA NA ROÇA XI



A menina passava o dia atrás da tia. De cá prá lá, de lá prá cá, era um sem fim danado. Trabalhar parecia ser a única ilusão para uma moça da roça. Se a tia pensava em amores, não dava a perceber, mesmo sendo moça casadoura. Após o café, ela enchia a trempe do fogão com adiantados para o almoço. Em seguida iniciava a varrição da casa, desde a varanda até a cozinha era chão prá danar. O terreiro ao derredor ganhava varredura também. A confecção da vassoura tomava tempo. Feita com um cabo semelhante ao de enxada era recheado com ramos até formar saia bem farta. Além de mato adequado, carecia fazer a amarração com cipós de modo que os ramos ficassem firmes e em simetria. À medida que a vassoura arrastava para longe as folhas secas caídas pelo chão crescia no ar um perfume de mato recém-apanhado. Era lida e mais lida: aguar muitas plantas, cuidar da horta, alimentar galinhas, lavar roupas na bica, passá-las com ferro a brasa, fazer quitandas e doces. À noite a tia bordava e costurava à luz das lamparinas, não se queixava e parecia não se cansar.


Para feitura dos doces havia no chão, em um canto bem perto da porta da cozinha, um arremedo de fogão. Nos tachos enormes, a tia ia misturando as frutas com o açúcar usando um pequeno remo. Horas e horas de muita quentura na pele e força nos braços até a calda borbulhante secar. A menina arregalava os olhos diante das delícias que iam surgindo, tinha preferência pelo doce de laranja da terra. A intenção da tia diante dessa labuta era fazer doces em barras, ora goiabada, ora laranjada, para vendê-las na cidade. Ficavam para o consumo umas poucas. Foi aí que brotou na menina o desejo de possuir uma barra de doce de laranjas só para ela. Queria levar para casa ao final da estadia para se fartar. Com um olho comprido na pilha de barras acondicionadas e prontas para serem despachadas à cidade, ela matutava um jeito para conseguir uma gostosura daquelas. No dia seguinte, de manhãzinha, enquanto a tia destrinchava uma galinha gorda para o almoço, a menina tomou coragem ao ver surgir um momento adequado para o pedido. Chegou até a pia no instante em que a tia retirava de dentro da galinha as entranhas, junto veio um cacho de ovas de variados tamanhos, dentre elas um semi-ovo. Olhou para aquilo com nojo e lançou logo o pedido: “tia, gostaria muito de ganhar uma barra de doce para levar para casa”. Talvez querendo evitar uma negativa direta ou com intenção de fazer graça, a tia impôs uma condição: “ganhará uma barra de doce somente se você engolir, agora, a maior gema desse cacho”. A menina não esperava por aquilo; ou se esquecia do doce ou enfrentava aquele quase-ovo. Sem pensar muito, topou. Tirou daquele emaranhado de tripas a bola vermelha, mole e viscosa. Jogou na boca e em instantes sentiu uma explosão quente e um gosto ruim se espalhando e descendo goela abaixo, a cabeça quis até estalar. E, pois, acabou a penitência.  De posse da barra de doce, conquistada a duras penas, a menina aprendeu que na roça era desse jeito. Tudo era custoso mesmo.




4 comentários:

Demósthenes disse...

Saudades, Iza amiga, da aurora da minha vida, de nossas lindas vidas; não que eu não goste da vida de hoje; num é isso; mas a diferença de tempos é um 'trem', né? É sim... Permita-me inserir, ainda aqui, um 'didin' de prosa... Risos...
Tias eram danadas sim; algumas, terríveis; avós também, às vezes... a minha materna, era...Certa vez, flagrou-me imitando o seu andar de ganso; era baixinha, pernas um pouco arqueadas, e andava balouçando; não vi que ela estava por ali; imitei-a e ela (tentou) correr atrás de mim para umas chineladas... risos... um 'trem'; tínhamos nossas diferenças e depois ela foi morar conosco até despedir-se para sempre... Era mulher de fibra, cara ruim e sorria pouco. Exigente.
Mas retrotraindo ao ovo cru, a gema, a clara, meu pai tinha esse gosto: engoli-los crus...
arre!!
Aprendi a comê-los moles, mas quentes e com pitada de sal e de pimenta do reino, da qual diziam horrores, principalmente a negra indiana. Fritos, pochè, estalados moles... cozidos, colorizados, ou, então, do jeito que narra: retirados das entranhas da galinha, em vários tamanhos, colocados dentro da caldaria da grande panela para cozimento (na parte final do cozimento, junto com os demais miúdos, fora a moela, e com o sangue reservado no vinagre). Ainda gosto de muitos modos de comer ovos, mesmo com a fama de proteicos e maldosos para com o organismo. Será? Já 'absolveram' a carne de porco e acho que os ovos também. De qualquer forma, nunca os abandonei.
Registro outro gosto meu, que você lembrou com delicioso aroma: doce de laranja da terra; se tiver à mesa, bem feito e gostoso, farto-me. Sem queijo, sem muita calda. A casca da laranja da terra, lavada à exaustão para tirar parte do amargor, às vezes deixada no tacho, debaixo da bica de água limpa; mas deixar aquele pouquinho de amargo, que faz toda a diferença no sabor. Hummmmm... muitíssimo bom. Obrigado, amiga; minhas papilas despertaram!! Bom dia e domingo. Essa domingo de chuva, de cheiro de mato, de terra molhada...Um beijo

Eurico de Andrade disse...

Mariza,
Seu texto está mais leve e solto e mais amadurecido, se formos compará-lo aos primeiros capítulos do "Uma menina na roça". Pode até ser impressão apenas, mas senti isso, sem saber se vc escreveu os capítulos de uma vez ou se está escrevendo-os um a um. Meu palpite é que a segunda opção é a correta. Deixe-me meter a colher de pau no meio, mesmo sem ter sido convidado. Coloque mais diálogos no seu texto. Você verá que fica mais atraente e mais leve, embora continue com a mesma densidade. Nos diálogos vc pode colocar impressões dos personagens, dar-lhes sentimentos e até colocar mais pitadas de humor. Ao trabalhar mais com os personagens vc verá que eles adquirem vida nas suas mãos e passa até a brincar com eles. Experimente! Parabéns pelo trabalho. Bjos

everaldo disse...

Querida Amiga, como sempre é um prazer enorme ler teus textos. fazemos uma fantástica viagem ao passado, saboreando o seu peculiar jeitinho moleca, matuta, brejeira de como vc dedilha as palavras para escrever causos com tanta riqueza de detalhes,clareza e perfeição didática, somente grandes escritores(a) conseguem isto. parabens uma vez mais. continuamos esperando os proximos capitulos....

Mariza Guerra disse...

Não sei por que até hoje não respondi aos carinhosos comentários. Deve ser por muita emoção na época em que os recebi. Revisitando o blog, depois de muito tempo, percebo que alguns amigos mais sensíveis possuem um olhar doce e usam palavras suaves nos momentos precisos.
Minha gratidão.
Beijos.